O que o caso português diz sobre o movimento de extrema-direita na Europa?

Assim como o Brasil antes dele com Bolsonaro, Portugal também se torna um campo experimental para essas fórmulas reacionárias que contam com apoio geoestratégico

Apoiadores do partido de extrema direita Chega marcham com bandeiras, 16 de maio de 2025. Horacio Villalobos / Corbis / Gettyimages.ru
Por Carmen Parejo Rendón.

A terra que a Revolução dos Cravos deu ao mundo selou tragicamente a sua fidelidade ao ciclo reacionário que corrói a Europa. Em apenas dois anos, a hegemonia do Partido Socialista foi estilhaçada, dando lugar, nestas eleições recentes, a uma Assembleia onde mais de dois terços servem a direita tradicional e a sua extensão grotesca: a extrema-direita do Chega, que agora reúne 22% dos votos.

O sonho de 1974 vacila, enquanto Portugal afunda numa deriva não apenas local, mas estruturalmente europeia.

Fundado em 2019 por André Ventura, antigo comentador desportivo com carreira no Partido Social Democrata, o Chega tem canalizado o descontentamento de setores atingidos pela precariedade económica, mas também por um discurso profundamente xenófobo, antifeminista e autoritário, muitas vezes alimentado pelo ressentimento e pela rejeição de direitos sociais, fomentado durante anos através de uma guerra cultural que ignora sistematicamente as condições materiais.

O sonho de 1974 está na corda bamba, à medida que Portugal afunda numa deriva que não é apenas local, mas estruturalmente europeia.

A guinada à direita da Europa não pode ser compreendida sem considerar a longa mutação do modelo liberal europeu, uma transformação estrutural que atingiu um de seus pontos de inflexão com a assinatura do Tratado de Maastricht em 1992.

Esse tratado não apenas lançou as bases institucionais da União Europeia, mas também impôs um arcabouço econômico ultraliberal, inspirado nos experimentos de laboratório realizados durante a ditadura de Augusto Pinochet no Chile: o esvaziamento do Estado nas esferas sociais, a hipertrofia do mercado em todas as esferas da vida e a proteção autoritária para garantir a reprodução do capital.

Desde então, a Europa do bem-estar foi sacrificada em nome da competitividade, e o mercado tornou-se dogma. Desregulamentação, privatizações e cortes — nunca aplicados ao aparato repressivo do Estado — continuam a redefinir os limites do que antes parecia impossível.

Esse cenário, incompreensível sem a queda do Bloco Socialista e o fim da Guerra Fria, abriu caminho para a expansão desenfreada do capitalismo existente. A Europa, de mãos dadas com os EUA, aproveitou essa era de unipolaridade para consolidar sua arquitetura ultraliberal. E a cada nova crise — como a de 2008 — a mesma lógica foi reforçada: resgates para o capital, medidas de austeridade para a população.

O surgimento de novos movimentos de esquerda como o Bloco de Esquerda, ligados principalmente a setores da classe média urbana, ofereceu uma alternativa parcial que hoje, como o Podemos na Espanha, está à beira de desaparecer.

Portugal — assim como Grécia, Espanha e Itália — foi vítima de punições financeiras e políticas de Bruxelas. As chamadas políticas de austeridade, impostas com violência colonial velada, levaram a uma crise interna tão profunda que culminou na renúncia do então primeiro-ministro José Sócrates. O desprezo pelos países do Sul era evidente até na linguagem: “PIGS”, sigla depreciativa que agrupava os mais afetados pelas soluções europeias para a crise econômica.

Portugal, politicamente renascido do impulso revolucionário do 25 de Abril e de um projeto de construção socialista, viu-se preso a uma estrutura supranacional que nega a sua soberania popular e social.

A deterioração das condições de vida, o aumento da desigualdade entre os Estados-membros e a perda de referentes ideológicos favoreceram, por sua vez, o esvaziamento do espaço da esquerda. O Partido Comunista Português, embora mais sólido organizacional e ideologicamente do que os seus congéneres europeus, também foi vítima do recuo geral. O surgimento de novos movimentos de esquerda como o Bloco de Esquerda, ligados principalmente a setores da classe média urbana, ofereceu uma alternativa parcial que hoje, como o Podemos na Espanha, está à beira de desaparecer.

A moda reacionária se apresenta como um confronto com o status quo — mesmo que seja seu braço armado —, deslocando o eixo do conflito da luta de classes para uma guerra cultural baseada no ódio, no medo e na exclusão.

Nesse vácuo político e ideológico, emerge a extrema-direita. Essa tendência reacionária se apresenta como um confronto com o status quo — mesmo que seja seu braço armado —, deslocando o eixo do conflito da luta de classes para uma guerra cultural baseada no ódio, no medo e na exclusão. Ventura e o Chega canalizam esse descontentamento de forma reacionária, oferecendo a restauração da ordem sob uma nova roupagem, mas com o mesmo propósito de sempre: defender os privilégios do capital por meio de uma política de força.

A ascensão do Chega, aliás, não pode ser explicada apenas pela dinâmica interna portuguesa. Sua emergência deve ser entendida como parte de uma estratégia internacional de reorganização reacionária, sustentada por redes ideológicas, midiáticas e financeiras que conectam a nova extrema-direita ao redor do mundo.

Essa “Internacional da Reação” reúne think tanks ultraliberais como a Atlas Network, fundações como a Disenso — ligada à Vox —, redes evangélicas transnacionais, fundos especulativos e plataformas digitais que operam como canais de desinformação e controle cultural.

Essa ofensiva não é improvisada: é alimentada pelo fracasso do progressismo institucional, pelo colapso do multilateralismo liberal e pelo medo social gerado pelas crises ecológica, migratória e econômica. Assim, articula-se um projeto global de restauração autoritária, combinando nacionalismo excludente com ultraliberalismo econômico, culto à tradição com guerra cultural e anticomunismo visceral com desrespeito cínico pelos direitos humanos. Assim como o Brasil antes dele com Bolsonaro, Portugal também se torna um campo experimental para essas fórmulas reacionárias que contam com apoio geoestratégico. Não é por acaso que esses grupos repetem a mesma linguagem, compartilham assessores e até organizam cúpulas conjuntas.

A extrema direita não desafia o poder do capital: ela o blinda. Por isso, conta com a aprovação de amplos setores do empresariado, da mídia e das forças armadas. Sua função histórica, como na década de 1930, é conter qualquer tentativa de transformação social, adaptando-se ao contexto comunicacional e tecnológico do presente. Neste sentido, o Chega não só representa um perigo para Portugal, como implica a inserção ativa do país numa rede de reação que procura reorganizar a ordem mundial em termos ainda mais brutais, mais excludentes e mais autoritários.

A extrema direita não desafia o poder do capital: ela o protege. É por isso que conta com a aprovação de amplos setores do empresariado, da mídia e das forças armadas.

O espírito do 25 de Abril, que representou uma ruptura histórica com o fascismo e um impulso em direção à soberania popular e ao socialismo, está sob ataque. Mas não se trata apenas do avanço do Chega, mas sim de uma ordem europeia que trabalha há décadas para apagar qualquer vestígio de um horizonte emancipatório. A UE nunca foi um projeto social: foi um mecanismo de disciplina econômica e geopolítica que hoje, em crise, precisa do autoritarismo para se sustentar.

O avanço do Chega nos desafia em sentido amplo. Seu crescimento não é fruto de uma onda espontânea, mas sim de um longo e meticuloso processo de desideologização, frustração social e esvaziamento do espaço político. Só uma extrema direita que se disfarça de antissistema pode avançar quando o sistema democrático perdeu toda a credibilidade e legitimidade.

Diante disso, a resposta não pode ser um centrismo impotente ou uma esquerda que administra ruínas. Precisamos reconstruir um projeto popular de ruptura que lembre que houve um dia — 25 de abril de 1974 — em que todo um povo, dos quartéis às fábricas, decidiu que havia chegado o momento da dignidade. E que entenda que hoje, como então, não basta resistir: é preciso avançar.

Carmen Parejo Rendón é escritora, analista internacioinal e filóloga. Reside em Sevilha, Reino da Espanha. @parejocarmen

 


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